terça-feira, 23 de novembro de 2010

Emprestar ou não emprestar um livro? Eis a questão

João comprou um livro bom, que emprestou a Mariana, que adorou e emprestou ao namorado, que não leu e não gostou, mas o emprestou ao Oliveira, que só leu até o meio, antes do acidente, e a finada, Dona Aurora, achou o livro, não leu, não devolveu, nem sabia como, mas o ofertou ao vizinho, o simpático Sampaio, que gostou tanto do livro como da finada, e se casaram, mas o livro, enfim, morreu no Sebo depois que os dois se separaram… 

Emprestar ou não emprestar? Eis a questão. Não falo de um livro ruim, que não gostamos, que nos foi dado e está ocupando espaço na estante. Falo de nossos “grandes livros”, aqueles que relemos vez ou outra, que amamos, que gostamos de passar olhar e ver que continua ali, que mostramos aos amigos, aos filhos e que não poucas vezes fazem parte da herança, do legado que deixamos. 

Não são poucos os que não emprestam livros nem por ordem judicial, não falam do assunto e passam a vida a pensar em desculpas para não emprestá-los. Também existem aqueles que emprestam, não sabem negar, mas dolorosamente sofrem a cada dia em que o dito não volta. Óbvio que existem os “senhores gentileza” que emprestam sempre, que não se incomodam e nem se revoltam quando o “livro sagrado” foi parar nas mãos “de quem mesmo?” 

O poeta e escritor Gabriel Gomez, autor de Borges e outras Ficções (2008), em sua obra “A culpa é do livro”, uma coletânea de dez narrativas deliciosas, cada uma contando uma história muito própria com relação a algum livro (a culpa por qualquer coisa é sempre do livro), em uma delas conta que se costumava escrever nos livros uma maldição para aquele que por ventura ousasse colocar as mãos no seu livro (“A quem furtar um livro da minha biblioteca, que se transforme em uma serpente em suas mãos e o subjugue, que seja atacado por paralisia e todos os seus membros sejam amaldiçoados. Que agonize em dor, gritando por perdão. Que não haja descanso para sua agonia, até que se afunde na dissolução. Que os vermes dos livros roam suas entranhas…”). Gomez mostra que cada livro tem para cada leitor uma importância visceral, formando, ambos, quase uma amalgama. Escreve ele em uma das narrativas (O bilhete perdido): “Cultivei o ato da leitura sabendo que nenhum livro é o primeiro, e nenhum é o último. Sempre percebi que formar uma biblioteca é um ato de criação; assim, como considero livros o principal instrumento da imaginação, não os leio tentando aprisionar o superficial. Todos esses livros são, para mim, companheiros vivos, que sorriem, choram, abusam, formam, acalentam, respiram. Minha surrada colcha de retalhos literários. Convivem pacificamente entre novos e velhos, lidos e esquecidos, clássicos e anônimos e valem pela satisfação que provocam em quem os têm nas mãos. Eu os sinto todos ligados a mim por laços invisíveis e remotos”. É a pura verdade, e como emprestar para alguém algo assim? 

Já o romancista, ensaísta e editor Alberto Manguel, em sua obra Uma história da leitura (1997) escreve que um livro traz sua própria história ao leitor. Será possível emprestar nossa história para outros? Ou será que por isso mesmo devemos emprestar, para que os íntimos possam saber o que nos é caro? Cada um terá sua própria resposta com referência ao ato de emprestar um livro. Qual é a sua?


Kelly de Souza é jornalista colaboradora da Revista da Cultura e Blog da Cultura. Compulsiva por literatura, chocolate e escrita - não necessariamente nessa ordem.